Hoje vamos deixar outra Pessoa falar por nós.
Como eu sou uma mulher com imaginação, não sou séria por natureza, não sou séria a valer! Mas o melhor é nós não avaliarmos os outros, "porque eles são outros e a gente não sabe o que vai lá dentro"!
Afrodite
"A gente cria o costume e gosta mais por costume que por outra coisa. Que outra coisa é que podia ser. Depois, a gente afeiçoa-se, mas afeiçoa-se já doutra maneira, e são uns filhos grandes que casam connosco.
Outros acham que a gente há-de gostar deles por isto ou por aquilo. Ora! A gente nem sabe porque gosta. Depois de gostar diz que gosta por isto ou por isto ou por aquilo, mas é só depois de gostar. Mas julgam que a gente gosta deles por serem fortes, ou por serem bonitos, ou por terem olhos azuis, ou qualquer coisa assim. E um pouco de tudo isso, senhor juiz, e não é nada disso.
As mulheres sérias a valer têm um ódio doido às putas. Julga o meritíssimo juiz que é por serem sérias? É, mas é por verem de que é que estão privadas por serem sérias. Esta é a verdade -, sr.juiz - e o mais - não faço o gesto por respeito.
Não há mulher nenhuma neste mundo - nem a mais séria, senhor juiz - que não tenha invejado essas que lá andam nas ruas à procura dos homens — nenhuma, senhor juiz, se dissesse a verdade como a pôr o coração aí em cima dessa mesa.
A alma da gente é uma coisa suja e o que vale é que a alma não tem cheiro.
Isto, senhor juiz, e para que Vossa Excelência saiba, e os senhores Jurados, é o que todas as mulheres sentem. Umas nem dão por isso e vão vivendo como os empregados de escritório que dão em velhos sempre a fazer a mesma letra; outras sentem e calam, e vivem prós filhos, porque lhes ensinaram a ser sérias - porque a gente aprende a ser séria como aprende a tocar piano; e outras não aguentam, senhor juiz, e rebentam, e no meio disto tudo a gente não sabe o que é melhor ou pior, porque o melhor é a gente não avaliar dos outros, porque eles são outros e a gente não sabe o que vai la por dentro.
E vern uma vontade de meter a costura pela pia abaixo, e de ir para longe ao menos só para chorar à vontade. A vida, senhor juiz - se o senhor juiz soubesse o que é a vida!
A falta de coragem é o que é o pior nas mulheres. A gente ainda tem medo dos tempos em que a lei nos batia mais que os homens. Então o senhor juiz julga que uma mulher séria usa saia curta por moda — lá no íntimo da alma dela? É para chamar os homens - mas o que ela não se atreve é deixá-los chegar. Então há alguma mulher que se decotasse senão para ser apalpada com os olhos?
Tenho, senhor juiz, tenho muitas coisas é a dizer e oxalá o senhor juiz e os senhores jurado se não importem que eu as diga. Porque esta, senhor juiz, é a verdade, e o que eu sinto, e o que toda a gente sente, se pensar nisso e eu quero dizer isso tudo, senhor juiz, sem tirar nem pôr.
O que faz mal à gente é a imaginação. Se uma mulher não tem imaginação é séria por natureza, senhor juiz, séria a valer.
Mas a gente nasce com o coração que recebe, e é com esse que tem de sentir e penar.
Sempre o mesmo homem, senhor juiz - o mesmo homem todos os dias, com o mesmo corpo e a mesma maneira!
Todas as noites, senhor juiz, e na mesma cama - nem a cama muda ao menos. E aquilo ao fim de tempo já não era viver, nem coisa que se parecesse - era uma coisa entre comer para não ter fome e fazer o serviço da casa... Se os homens soubessem o que custa a aturar! Se soubessem o nojo que a gente tern por eles ca dentro quando está encostada a eles!
E eu, senhor juiz, não tinha outro remédio senão matá-lo para estar bem com a minha consciência e com a Igreja.
Foi por isto, senhor juiz e senhores jurados que eu matei o meu marido."
Maridos por Fernando Pessoa, O mendigo e outros contos.
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